segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Planejamento

Hoje é o último dia do ano.
Está se encerrando mais um.
É um dia de euforia, é o dia de virar a página.
Amanhã já é o ano novo. Com tudo novo.
Novos sonhos, novas possibilidades.
Ano Novo, Vida Nova! E, hoje, é véspera.
É o dia de escrevermos a última linha dessa página.
Só mais uma linha.

Então, olhamos pra cima e vemos uma monte de lacunas.
Linhas e mais linhas vazias
Linhas e mais linhas mal escritas
Linhas e mais linhas escritas corretamente
Linhas e mais linhas não planejadas que
nos dão uma imensa satisfação por tê-las escrito.

Mas, o dia está acabando. Não dá pra revisar tudo.
Não dá pra consertar nada. E essa última linha?
Ah, não dá pra fazer muito. Uma oração, talvez pegue bem.
Coisa rápida. Alguns agradecimentos a Deus e ponto.

Pronto! Fechou o ano. É festa! É a hora da Virada!
Virou! Então? Mais uma página em branco igual a anterior...
O primeiro dia do ano, do Ano Novo, é meio melancólico!
Talvez pela ressaca ou preguiça ou falta de jeito,
pensamos em todas as linhas não escritas no ano anterior,
pegamos um monte delas e planejamos escrevê-las de novo.
Rapidamente, pensamos em novas e as botamos na lista.

Este ano, neste Ano Novo, vou tentar uma coisa diferente.
Vou me dar uma semana para planejar meu novo ano.
E depois, de vez em quando, vou revisar meu planejamento.
Também vou fazer segredo à mim mesmo de alguns itens,
planejando as linhas não planejadas. Será que funciona?
Quero coisas novas, inesperadas. Quero coisas das quais
ainda não não sou capaz de querer.

quinta-feira, 31 de maio de 2007

Resgate

Tiago acordou de sobressalto com o telefone. Era seu primo Carlos. A tia Teresa, mãe do Carlos, estava muito mal e queria vê-lo. Vinte anos havia se passado desde a última vez que se viram. Vinte anos sem nenhuma palavra. Mantinham, pelos parentes, os endereços e telefones atualizados para o caso de emergência. E esse era um caso. Decidiu ir até lá. Tia Teresa morava em um sítio a mais de dois mil quilômetros. Era uma sexta-feira. Pegou algumas coisas e ligou para o trabalho dizendo que faltaria naquele dia. Talvez, na próxima semana inteira. Chegaria no domingo, pensou. E, assim, seguiu viagem. Nos dois primeiros dias o silêncio tomou conta de si. Seus pensamentos estavam bloqueados. Apenas dirigia. Parava para abastecer. Parava para comer. Parava para dormir. No domingo de madrugada iniciaria o último trecho de sua jornada. Sairia da rodovia e entraria pelas estradas de terra, as quais também não via desde sua saída para cidade grande. Não as via há tanto tempo quanto à tia Teresa.

Ao sair da rodovia para pegar a estrada que o levaria até seu destino, deparou com uma castanheira imponente, como que na esquina. A mesma castanheira de vinte anos atrás como se fosse uma migalha lançada para marcar o caminho de volta. Pensou na tia Teresa pela primeira vez desde o telefonema. Estava entrando em seu passado. Fora a tia Teresa que o incentivara a sair dali para estudar, dar um rumo na vida, como dizia. Ela era uma mulher forte, alegre, bem à frente daquele lugar. Mas ali, há vinte anos, era apenas a filha solteira do seu avô. Uma mulher que não tinha dado certo, como cansara de ouvir da família. Pouco depois da saída do Tiago, ela se casara com o dono do sítio vizinho. Desde então não se falaram mais. A tia Teresa se sentia constrangida de encará-lo depois de ter se conformado com aquela vida que tanto criticara. Com a vida à qual o convencera a abandonar. Assim como Tiago, ela esquecera o passado. Ela por ter desistido. Ele, por ter seguido.

Durante a viagem Tiago tentava identificar as casas, os lagos e o que ele costumava chamar de triângulo perfeito: a igreja, o campo de futebol e o boteco, sempre juntos. Comparava cenas de matutos à cavalo com as que mantinha ainda na memória. Via os meninos pescando na beira das pontes de madeira e se via neles. Via a gentileza das pessoas que andavam pela estrada e que o cumprimentava com um aceno de cabeça e percebeu que se identificava mais com isso do que com a indiferença da cidade grande. Pouca coisa mudara naquela região. Pelo menos na essência.

Após horas de viagem, parou num posto para abastecer e almoçar. Um lugar estranho no meio do nada. A gasolina, pensou, além de batizada já fizera a primeira comunhão. O restaurante era uma casa de madeira velha onde se percebia as goteiras no teto mesmo sem chuva. Haviam dois ambientes. Um com seis mesas onde dois caminhoneiros estavam almoçando. O outro, nem quis ver o que tinha. Tiago fez seu pedido. Era uma comida honesta e copos mais ou menos limpos. Enquanto comia, as lembranças de sua mocidade invadiam seus pensamentos. Estava sentado perto da janela e viu que sua tranca era uma tramela. "Tramela, tramela, tramela", repetiu em voz baixa com um sorriso nostálgico saboreando as sílabas. Há quanto tempo não pronunciava essa palavra! Quantas outras em seu vocabulário estavam perdidas, esquecidas, pensou. Nisso, percebe que seu sorriso fora correspondido por uma mulher com formas bastante avantajadas atrás do balcão com um decote improvável. Disfarçou desconcertado e pediu a conta. A mulher se aproxima insinuosa e pergunta se ele não queria "comer" mais alguma coisa. Só então se deu conta da situação e percebeu que os caminhoneiros já haviam se retirado para o salão ao lado onde dançavam ao som de Roberta Miranda. Tiago pagou a conta e saiu a passos largos.

Haviam ainda pouco mais de duas horas até chegar ao sítio da tia Teresa. Era pouco, pensou. Queria mais tempo para arranjar suas lembranças. Queria mais tempo para tratar seu passado. Até um pneu furado seria bem vindo nessa hora. Mas o pneu não furou e a distância diminuía como os intervalos dos batimentos de seu coração. Em frente ao sítio Tiago parou e desceu do carro. Pegou um torrão de terra do chão e o esfarelou. Depois outro. Talvez procurando algo. Talvez sentindo novamente sua origem. Talvez ganhando um pouco mais de tempo. Seguiu a pé até a casa onde tia Teresa estava sentada debaixo de uma árvore. Tiago fez um aceno e recebeu um sorriso alegre. Começava uma nova etapa de suas vidas. Para Teresa, uma etapa curta. Para Tiago, um caminho longo. Mas reconciliado com as estradas que percorreu.

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Legado

Seu Toninho terminou o jantar e foi até a varanda como fazia todas os dias enquanto sua esposa, dona Dinha, retirava a mesa. Sentou em sua cadeira de vime e contemplou a noite limpa, com a lua enorme clareando o pequeno milharal que serviria para tratar o gado leiteiro durante as secas. Uma leve brisa trouxe umas folhas secas à varanda e poeira para seus pés. Retirou seu chinelo de couro, deu uma sacudida nele e voltou a calçá-lo. Depois, pegou seu canivete do cinto, colocou um pé sobre a cadeira e aparou a unha do dedão. Depois, dos outros dedos. Dona Dinha apareceu na porta por uns instantes, olhou a lua, olhou para o chão e esbravejou que não queria ver pedaços de unha no chão e voltou para a cozinha. Seu toninho guardou o canivete e voltou a calçar seu chinelo. Estava com setenta e seis anos e nunca antes o silêncio o incomodara como agora. O tempo afastara os sons da vida. A maioria de seus amigos já haviam morrido. Os vivos, tão dispostos quanto ele para viver. Seus filhos, casados e morando longe. Seus netos, grandes demais para apreciar a presença de um velho.

Seu Toninho olhou a sua volta. Sua pequena fazenda era o legado de sua vida. O gado leiteiro para as despesas do dia-a-dia. O gado de corte como negócio principal. Sempre teve tudo sob seu controle. Mas sabia que seu fim estava próximo e que deveria passar o bastão para frente. Se lembrou dos frangos que, com a luz acesa, não dormiam e engordavam mais rápido. Viviam mais em menos tempo, pensou. Ele sabia que tinha ficado acordado muito mais do que podia. Já tinha vivido mais que o tempo que passou. Acordara cedo para a vida e já estava em débito com ela.

Enquanto pensava, entrou na varanda o Capitão. Era um cachorro vira-latas velho, de mais de quinze anos. Haviam falhas em seu pêlo devido às sarnas. Deitou ao lado da cadeira, deu uma lambida na mão de seu dono que retribuiu passando-a em sua cabeça. Seu Toninho se lembrou de quando Capitão era jovem e o ajudara na lida com o gado. Depois de um dia de trabalho, ainda tinha energia para brincar com a criançada. Ainda tinham energia! Eram dois velhos agora. Seus pensamentos eram interrompidos devido aos cochilos intermitentes. Se levantou de sobressalto e murmurou:

- Que merda! Nem consigo terminar um pensamento...

Como vinha fazendo há algum tempo, olhou solenemente para o Capitão e se despediu em silêncio. Todas as noites lhe passava pela cabeça que talvez aquela seria a última vez que se veriam. Chutou os tocos de unha para o quintal, entrou em casa e trancou a porta. Capitão se levantou do chão e deitou na cadeira de seu Toninho. Ali ele ficava até seu dono abrir a porta no dia seguinte. Capitão ainda tinha um otimismo que seu Toninho já perdera.