domingo, 14 de junho de 2009

Hora do Banho

Acontece assim: você viaja pela primeira vez com uma namorada para passar o final de semana juntos. Trata-se de uma viajem romântica para um desses lugares onde chove muito, é frio, tem muito barro, nenhum lugar para estacionar e um monte de lojinhas vendendo compotas e cachaças de origem duvidosa que você nem tem coragem de experimentar. Mas o chalé tem lareira e o fogo aquece os corações, como se sabe.


Você leva uma mala, mas teria levado uma mochila se o ziper não tivesse emperrado na hora de fechar. E sua namorada leva duas. Uma menor, maior que a sua, e uma grande que faz você pensar que vai mais alguém com vocês, afinal, ninguém poderia levar tanta coisa para um final de semana. Mas, para seu alívio, só ela entra no carro.


Ao chegarem ao chalé que, assim como um Big Mac, na foto na internet parecia bem maior, você tira sua nécessaire da mala e coloca suas coisas no banheiro. Só escova de dente, pente e barbeador, afinal, o chalé fornece tudo o mais que você precisa. Que é o sabonete, pasta de dental e xampu. Sua namorada então diz: ah, vou aproveitar e colocar minhas coisinhas no banheiro também. E abre a mala menor e você descobre então que aquilo é a nécessaire dela!


- Poxa, você esqueceu suas coisas - comenta ela ao colocar a primeira leva na pia. Pode usar as minhas, se quiser - oferece.
- Ah, tá bom... - você diz depois de hesitar um pouco na dúvida se contava ou não que não tinha esquecido nada e que era só aquilo mesmo.
- Posso jogar fora? - pergunta ela tentando ganhar espaço e segurando com a ponta dos dedos a sua nécessaire que veio de brinde na compra da escova de dentes.
- Heim? - você pergunta constrangido, já que não tem uma resposta.
- Ah, vou deixar aqui no cantinho - diz ela resolvendo com delicadeza o impasse. Você pode usar essa bolsinha para guardar alguma coisa depois. Você pode usá-la para colocar os chinelos antes de guardá-los na mala para não sujar as roupas - sugere ela.
- Ah, boa idéia - concorda você sem avaliar que os chinelos dela, 36, podem caber, mas os seus, 42, de jeito nenhum. E você não avalia porque neste momento está pensando: chinelos? Eu deveria ter trazido?


Depois, na hora do banho a dois - e aqui vou me ater só ao banho propriamente dito -, você pensa em pegar os sabonetinhos e xampuzinhos do chalé, mas decide ficar na defensiva e esperar os passos dela. Tem vários frascos, de todas as cores e tamanhos que ela trouxe e mais uma coisa estranha que só depois você descobre que se trata de uma esponja com ação esfoliante. E esta palavra você consulta no Google quando volta para entender o que é. Meu corretor ortográfico, por exemplo, não reconhece esfoliante como uma palavra válida.


O sabonete é liquido e tem um cheiro tão bom que se você não estivesse acompanhado tomaria um gole para provar. Em seguida sua namorada começa a lavar seus cabelos com um xampu feito com um monte de coisas e te faz pensar que tem que estudar mais para saber como comprar um xampu que preste. Depois vem o condicionador, coisa que você sempre achou pura frescura, mas pensa que quem entra no banho é para se molhar. E o banho já passou de meia hora, coisa que você sempre achou um absurdo, mas você está como criança hipnotizado com todos aqueles cheiros e espumas e o processo em si. Então, quando você acha que terminou, vem um outro sabonete, mas este só para o rosto, para controlar a oleosidade. Até então tudo era dividido, o processo é igual para o dois. Mas sua namorada pega um frasco bem pequeno, murmura alguma coisa que você entende que não é para você. E você a olha usando aquilo como criança vendo adultos tomando cerveja. Sabe que é bom mas não pode provar.


Saem do banho e você tem certeza que tomou o melhor banho da sua vida. E por um momento passa a dar razão ao tempo que as mulheres dedicam ao banho. Você vai se trocar, pois, vão sair para jantar. E ela se coloca em frente ao espelho com o secador e pega mais um monte de cremes e demora uma eternidade. Mas, desta vez você não reclama e ainda fica na expectativa de ser convidado para usar mais um desses produtos que você não sabe para que serve.


Na volta do jantar, sua namorada já está meio alta com as duas taças de vinho docinho que só mulher gosta e que você toma para não criticar o gosto dela, apesar de ter ficado com vergonha de ter feito o pedido ao garçom.


- Vem - diz ela insinuosa olhando para a cama.


Você então olha para o banheiro por um instante. Em seguida para ela e para a cama e pensa: ah, banho é bom, mas nem tanto!

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Que Homem *

Contra todos os fatores existentes, Romualdo, um homem infeliz, estava sorrindo. Um sorriso bobo na cara, um olhar distante. Estava dirigindo um Fusca azul - sim, azul calcinha -, em uma estrada de terra, esburacada. Eram sete horas da manhã e estavam indo visitar parentes no interior. Ao lado, sua mulher, Linda, que de linda só tinha o nome. Tinha um mau humor pemanente e uma voz aguda e irritante. Como tinha feito escova no dia anterior, ela não abria a janela para não desarrumar o cabelo com o vento. Nem a sua e nem a do Romualdo. Atrás da mulher, o filho de 7 anos comendo um pacote de biscoito de polvilho maior que ele. E, atrás de Romualdo, a sogra com uma mala no colo que não coube junto com as outras no porta-malas. A cada solavanco, a mulher levava as mãos ao cabelo como que segurando para não desarrumá-lo, ia farelo de biscoito pra todo lado e a sogra remungava pelo peso da mala que espremia seus joelhos. E o Romualdo lá, só sorrindo.

Nisso, passa uma Belina por eles. E a sogra:
- Tá vendo, Romualdo, você deveria ter comprado um carro desses. Bem mais rápido que este seu aqui. E, olha o porta-malas! Eu não precisaria carregar mala no colo!

Romualdo pensou em responder, mas só continuou a sorrir. Em sua cabeça só vinha a lembrança da doce voz dizendo "que homem!" em seu ouvido. Na noite anterior, Romualdo tinha saido com os amigos para o bar. Na volta, já bêbado e sozinho, resolvera parar numa esquina qualquer onde encontrou com a Marisa. E, por apenas três mil cruzeiros, teve seu maior momento como homem na vida, quando Marisa disse ao pé do ouvido "que homem!". Da farra, só ficou a frase que, pra ele, um fracassado em tudo, soava como a redenção.

Enquanto seguiam viagem, Romualdo vê surgir por debaixo do seu banco um sapato vermelho de mulher.
- Nossa! Ela esqueceu o sapato aqui! - sussurrou assustado, já perdendo o sorriso bobo.
- O que foi que você disse, Romualdo? - perguntou a mulher.
- Nada... Nada não, querida... - desconversou.
- Tá é louco! - atacou a sogra - deu de falar sozinho agora.

Romualdo primeiro pensou em como devolveria o sapato à Marisa. Seria um bom pretexto para vê-la novamente. Depois, movido pelo bom senso e pelo senso de sobrevivência, decidiu que tinha que se livrar daquilo logo! Como explicaria um sapato de mulher dentro do carro. E vermelho! Deu uma nova olhada no sapato e notou que suas meias não estavam combinando com a calça. Linda sempre implicava com ele por causa das meias. Ela era conhecida na família como a que sabia combinar meias e ela não iria querer fazer feio junto aos parentes. E era questão de tempo até que ela se lembrasse das meias e virasse para verificar, o que a deixaria de cara com o sapato vermelho. Resolver abrir a janela. Tinha que abrir a janela para jogar o sapato fora.
- Que é isso, Romualdo? - gritou a mulher - E a minha escova? Sabe quanto custou, Romualdo?
- Essa janela é a minha e eu estou com calor! - retrucou firme, coisa que nunca fizera antes - Se quiser, deixe a sua fechada - arriscou.
- Tá é louco! - resmungou a sogra - deu de ficar com calor às 7 da manhã agora.

Passando sobre uma ponte estreita, Romualdo viu a oportunidade que esperva.
- Olha - apontou para o outro lado -, não é ali o sítio dos seus parentes?

Enquanto todos olhavam, rapidamente Romualdo pegou o sapato vermelho e o jogou fora.
- E essas meias, Romualdo? - questionou a mulher mirando seus pés - E estas meias? Você não tem jeito mesmo! O que os parentes vão pensar de um homem que não sabe nem escolher as próprias meias!
- Dá pra saber muito sobre uma pessoa só olhando para seus pés - sentenciou a sogra.
- É isso que você quer, Romualdo? Que nossos parentes saibam quem você é? Você não é nada, Romualdo. Tem que trocar estas meias!
- Não, é que...
- É que nada, Romualdo - interrompeu a mulher - você vai trocar essas meias antes que alguém perceba.

Por acaso, as meias que combinavam com sua calça estava na mala no colo da sogra. A mulher pegou as meias e entregou ao marido:
- Coloca no bolso! Quando chegar, você diz que precisa ir ao banheiro e vai lá trocar estas meias, entendeu, Romualdo?
- Claro, querida...

Assim que chegaram, ao sair do carro e antes de cumprimentar qualquer um, a mulher já informou.
- O Romualdo precisa ir ao banheiro, não é Romualdo!
- Deixa eu cumprimentar o pessoal primeiro...
- Você está apertado, Romualdo! Vai lá depois você cumprimenta - ordenou a mulher com olhar de poucos amigos e ajeitando o cabelo com as mãos.
- Está bem querida...

Do banheiro, Romualdo escutou a sogra lá de fora:
- Meu sapato... Ué, sumiu meu sapato!
- Como assim, mãe? Como você perdeu seu sapato dentro de um Fusca? Ainda se fosse uma Belina, mas num fusca não tem espaço para perder nada!
- Não estou encontrado! Tirei durante a viagem porque estava machucando. É novo, sabe? Não está aqui!

Romualdo ficou pálido. Tinha jogado fora o sapato da sogra e não da Marisa. Hesitou um minuto. Decidiu então sair e encontrou a sogra sem entender nada, só com um pé descalço e outro com um sapato vermelho. Triunfante, ironizou:
- Dá pra saber muito sobre uma pessoa só olhando para seus pés! - e imaginou novamente Marisa em seu ouvido dizendo "que homem!"


* A história do sapato vermelho surgindo por debaixo do banco do carro é bem comum e varia de acordo com a região e com a criatividade de quem conta. Essa é a minha versão.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Deus no Orkut

Como estava Se sentindo um tanto quanto antiquado, Deus achou que seria um boa idéia uma abordagem mais moderna para falar com Seus filhos e decidiu entrar no Orkut. Assim, foi procurar São Pedro para ajudá-Lo, já que ele era mais entendido no assunto e também porque era o único que tinha um laptop, que era usado para consultar os sites de meteorologia só para sacaneá-los depois.

- Bobagem! - exclamou São Pedro já desaprovando a idéia - Esqueça! Ninguém vai acreditar que Deus está no Orkut. Perda de tempo e não vou ajudá-Lo. E estou ocupado também.

O Todo Poderoso, que não é de ficar dando ouvidos sobre o que deve ou não fazer, tomou o laptop e foi lá preencher Seu perfil. Nome, Deus! Bem simples. Sexo, masculino. Apesar de saber que geraria protestos entre as feministas mais aguerridas. País, Brasil, como todo mundo sabe. A idade omitiu por pura vaidade. Estava em forma e sempre perguntava "quantos anos você Me dá?" com uma ponta de orgulho. Também omitiu a religião. Daria pano pra manga e não queria confusão. Em cozinha, até colocou "árabe", mas apagou. Vincularia Sua preferência ao baixo preço das esfihas do Habib's e poderia ser acusado de lobby. As demais informações, como não eram obrigatórias, não preencheu. Por pura falta de habilidade com aquele quadradinho do laptop que substitui o mouse.

Depois, como todo iniciante no Orkut, Deus foi procurar Seus amigos.
- Ô, Pedro! - chamou Deus - Como faço para adicionar todo mundo aqui?
- Um por um! - respondeu São Pedro seco e contrariado.
- Só pode estar de brincadeira! Vou levar uma eternidade! - ironizou.

São Pedro só deu uma suspirada, ignorou o comentário e pensou: fui pego pra Cristo hoje...

Instantes depois, quando já havia enviado o convite para todos os participantes do Orkut, Deus estava apreensivo.
- Ô, Pedro! Convidei todo mundo pra ser meu amigo. Por que não tenho ninguém na minha listinha ainda?

São Pedro, já irritado com tudo aquilo, resolveu conferir o perfil do Velho.
- E esta foto? - perguntou São Pedro com espanto.
- É a minha foto, oras! - respondeu Deus com um sorriso maroto.
- Este é o Clint Eastwood! - bradou São Pedro levando as mãos aos céus, que, no caso, podia ser qualquer direção.
- Não, não, Este sou Eu! - afirmou com uma ponta de satisfação - Ele é que é a minha imagem e semelhança, lembra? Aliás, pelo que me consta, todos são! Só escolhi um que achei mais...
- Desisto! - interrompeu São Pedro. - Toma, pegue estas pedras! Escreva nelas porque sempre funcionou. E, deixe de onda!
- Mas quero ficar mais descolado, falar com todos por um meio mais moderno, usando a internet. Sabe como é, fazer mala direta, deixar scraps, mandar apresentações com mensagens bacanas, correntes de paz, amor... Estas coisas.
- Pelo amor de Deus, Deus! Isso é spam! - sentenciou São Pedro - E isso é coisa do capeta! Use as pedras! E, me devolva o laptop que tenho que ver meus emails.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Ciúmes

Seu Toninho era um homem apaixonado. Mais de cinqüenta anos de casado e ainda olhada para dona Dinha com o mesmo brilho no olhar de quando a viu pela primeira vez. Mas, mesmo com toda a paixão, ou, talvez por causa dela, o ciúme ainda não estava domado. Até para os genros que vinham abraçá-la no natal ou no ano novo ele deixava claro com um olhar sua inquietação. Já dona Dinha, por ele, era mais contida. Mas tinha nele seu grande amor. Seriam um casal perfeito se não fosse o jeito rude de seu Toninho. De família italiana, crescido e vivido na roça. Não economizava nos gestos, nos palavrões e nem no volume da voz. Mesmo à mesa, com boca cheia. E dona Dinha não ficava muito atrás. Nem nos palavrões.

Já o encontro do casal, na cama propriamente dito, com o tempo, com a idade, se tornara menos freqüente. Mas, eventualmente, um procurava o outro que raramente declinava o convite. Mas, naquele dia, dona Dinha não estava afim.

- E, porque não? - Quis saber seu Toninho já levantando a voz.
- Estou cansada, com dor de cabeça. Hoje não, vamos dormir. Se aquiete! - ordenou dona Dinha.
- Sei bem o que é isso! Cansada? Sei muito bem!
- Sabe o quê, Toninho? Heim, sabe o quê? Só estou cansada.
- Cansada, cansada... Você tá é guardando! Guardando pro Bino! - acusou seu Toninho num desabafo.

Bino era um rapaz que paquerava dona Dinha quando ela ainda tinha quinze anos, pouco antes de conhecer seu Toninho. Nunca tiveram nada, e o rapaz nunca mais foi visto. Mas dona Dinha sempre deixou a suspeita pra provocar ciúmes no marido. E seu Toninho nunca disse um piu sobre o assunto até aquela noite. Só pra não dar o braço a torcer.

Com a acusação do marido, dona Dinha começou a passar mal, baixou pressão, ficou pálida! Nisso, o filho mais velho que estava de férias com a esposa invadiu o quarto para acudir a mãe depois de ouvir a discussão dos dois. Outras duas filhas, uma solteirona e outra nem tanto, vieram em seguida. O filho mais velho, o Chico, deu de dedo com o pai:

- O senhor nem está mais dando no couro e vem encher o saco da mãe! Se acontecer alguma coisa com ela, eu mato o senhor!

Sob a ameaça, seu Toninho saiu assustado porta a fora. As duas filhas troxeram água com açúcar, abanaram e falaram todas ao mesmo tempo e cada uma mais alto que a outra. Até que dona Dinha melhorou e todos se acalmaram e sentiram falta de seu Toninho.

- E o pai? - questionou a mais nova.
- Ele foi embora. - retrucou Chico com ar de quem tinha feito a coisa certa.
- Mas você tinha que ter falado daquele jeito com o pai? Precisava? E agora? Nessa hora da noite o pai por aí na rua, sozinho. - acusava a outra filha, já reestabelecendo o volume de voz padrão da família.
- É que, é que... - tentava se justificar Chico, com um princípio de choro - Olha as coisas que ele falou pra mãe...
- Você vai é atrás dele! - disse sua mulher - Não quero ninguém dizendo que meu marido é o culpado pelo sumiço do próprio pai. Ô família, viu?
- Está bem, vou pegar o carro e vou atrás do pai. Não deve ter ido muito longe.
- Mas, vê se bota uma calça, né? Não vai sair só de cuecas por aí. O que os outros vão pensar?
- Vão pensar que é um mendigo com esses furos na cueca. - Alfinetou a irmã solteirona.

Chico vestiu uma calça e foi até a garagem pegar o carro para tentar encontrar seu pai. Pensou em ligar para os parentes para pedir ajuda. Quem sabe seria melhor já ligar pra polícia, pensou já cheio de remorsos. Então, ao abrir a porta do carro, lá estava seu Toninho, de pijamas, deitado no banco de trás e dormindo como um anjo. Como se nada tivesse acontecido.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

O Retorno

Três dias depois de ter saído subitamente pelo portão da frente e se perdido pelas ruas da cidade que mal conhecia, Oswaldo retornou a sua casa. O portão estava providencialmente entreaberto, o que permitiu sua entrada sem ser notado. Estava assustado, cansado e com medo de como seria recebido. Nunca havia ficado tanto tempo sozinho longe e sem proteção de sua família.

Primeiro deu poucos passos, parou, olhou o entorno atento. Estremeceu ao ouvir o barulho de um abacate caindo do pé. Seus olhos ficaram esbugalhados de medo e ficou paralisado por um instante. Quando retomou a respiração, começou a andar lentamente pelo quintal, como que reconhecendo o lugar. Pensou em entrar ou chamar para avisar que tinha voltado, mas lhe faltou coragem. Continuou a andar, foi até os fundos e se sentou na calçada para descansar um pouco. Exausto, não resistiu e pegou no sono. Mesmo ali na calçada, ainda escondido, conseguiu dormir sossegado, se sentido já em casa. Até que ouviu alguém gritando: Oswaldo! Seu cretino! Por onde andou?

Outro susto! Saiu do anonimato e estava frente a frente com seu maior medo agora, o de ser rejeitado, o de não ser mais aceito. Tremendo, de cabeça baixa, com os olhos marejados, tentou dizer alguma coisa e o que saiu foi mais um lamento, um choro contido. Viu uma cara amarrada, como que tentando decidir seu destino. Então, aparece o menino correndo, avisado de seu retorno pelo grito, com um sorriso enorme e o abraça, rindo e chorando: Oswaldo, você voltou, você voltou! A mãe do menino também abriu um sorriso e também se aproxima: nunca mais faça isso, Oswaldo! Quer matar a gente de susto? Nunca mais... Oswaldo, sem se conter de alegria, abandou o rabo e os lambeu como se fossem um enorme pote de sorvete.

O Som do Silêncio

Guilherme chegou em casa e procurou em seu computador a música The Sound of Silence. Ouviu só a primeira parte: Hello darkness, my old friend, I've come to talk with you again. Por alguma razão precisava se lembrar da música. Precisava do silêncio, mas queria uma trilha sonora que o representasse e esta música vinha a calhar. Precisava da escuridão, mas queria uma luz ao longe sinalizando uma possível fulga. Algo que sinalizasse a transitoriedade da situação.

Não conseguiu o silêncio. Sua cabeça não parava de falar, de avaliar, de julgar, de reprimir, de contextualizar, de ponderar. E a trilha sonora se tornou apenas mais um entre tantos ruidos. A escuridão, sim, esta estava ali, a postos. Mas sem nenhum ponto de luz pela qual se orientar.

- Não rolou uma química, entende?

Esta foi a explicação que ouviu. De química, mesmo, só se lembrava maldita tabela periódica. E, da tabela periódica, só se lembrava do peso atômico do hidrogênio. O que não é grande coisa em termo de conhecimento da matéria. E, aqui, vale o trocadilho.

Já cansado, pegou um livro do Charlie Brown, o desenho e não a banda, pra se distrair um pouco e leu algumas tirinhas. Sempre funcionava! Se identificava com o personagem. Socialmente inviáveis, mas com uma esperança mais verde que maçã. Maçã verde, claro. E, depois, foi domir.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Origem dos Mafagafos

Os mafagafos, ao contrário do que se pensa, não são pássaros. São, na verdade, uma espécie de roedor, muito parecido com as capivaras brasileiras - menores, claro - que viviam na península ibérica. A confusão deve-se ao trava-língua que fala em "ninho de mafagafos". O que não é um erro, tendo em vista que os roedores também fazem ninhos para acolher sua prole. No caso dos mafagafos, seus ninhos eram montados em tocas às margens dos rios.

Os mafagafos foram extintos no final do século XVII. Sua carne era muito apreciada pela população local e sua caça extremamente fácil, o que levou ao fim desta espécie. Uma das características destes animais era a permanência no ninho até quase adultos sob o cuidado dos pais. Como este processo era longo, até o amadurecimento de uma ninhada, surgiam outras, tendo, num mesmo ninho, grupos de filhotes com idades diferentes. O casal mafagafo, aliás, não se separava e, quando um morria, o outro permanecia sozinho pelo resto da vida. Se ainda tinha filhotes, continuava a mantê-los.

O filhote mafagafo era muito frágil e dependente. Quando ouviam o som característico de seus pais voltando - que sempre saíam juntos confiantes da proteção do ninho - , colocavam a cabeça para fora da toca, ansiosos pelo alimento que receberiam. Então, era comum que caçadores imitassem este som através de apitos feitos de madeira e, quando os filhotes botavam a cabeça para fora, estes eram atingidos pelos caçadores com um pedaço de pau. Os que não conseguiam sair, os menores, acabavam sobrevivendo da tocaia fugindo para o fundo da toca. Assim, as ninhadas mais novas conseguiam sobreviver. O curioso é que havia uma proporção entre os filhotes mais velhos, ou seja, os que foram atingidos, de acordo com a idade aproximada deles, e os demais. Com um sofisticado cálculo, podia-se deduzir a quantidade de filhotes que havia no ninho a partir dos mafagafos abatidos.

Na cultura local, para estimular tanto a caça, quanto o raciocínio, os pais indagavam às crianças a pergunta a que tanto estamos acostumados: se desmafagafássemos (termo que significava abater mafagafo) cinco mafagafos, quantos mafagafos teríamos? O cálculo se perdeu no tempo. Ficou apenas a pergunta como desafio. Mas, desafio mesmo, era a resposta.

É tudo verdade!