terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Legado

Seu Toninho terminou o jantar e foi até a varanda como fazia todas os dias enquanto sua esposa, dona Dinha, retirava a mesa. Sentou em sua cadeira de vime e contemplou a noite limpa, com a lua enorme clareando o pequeno milharal que serviria para tratar o gado leiteiro durante as secas. Uma leve brisa trouxe umas folhas secas à varanda e poeira para seus pés. Retirou seu chinelo de couro, deu uma sacudida nele e voltou a calçá-lo. Depois, pegou seu canivete do cinto, colocou um pé sobre a cadeira e aparou a unha do dedão. Depois, dos outros dedos. Dona Dinha apareceu na porta por uns instantes, olhou a lua, olhou para o chão e esbravejou que não queria ver pedaços de unha no chão e voltou para a cozinha. Seu toninho guardou o canivete e voltou a calçar seu chinelo. Estava com setenta e seis anos e nunca antes o silêncio o incomodara como agora. O tempo afastara os sons da vida. A maioria de seus amigos já haviam morrido. Os vivos, tão dispostos quanto ele para viver. Seus filhos, casados e morando longe. Seus netos, grandes demais para apreciar a presença de um velho.

Seu Toninho olhou a sua volta. Sua pequena fazenda era o legado de sua vida. O gado leiteiro para as despesas do dia-a-dia. O gado de corte como negócio principal. Sempre teve tudo sob seu controle. Mas sabia que seu fim estava próximo e que deveria passar o bastão para frente. Se lembrou dos frangos que, com a luz acesa, não dormiam e engordavam mais rápido. Viviam mais em menos tempo, pensou. Ele sabia que tinha ficado acordado muito mais do que podia. Já tinha vivido mais que o tempo que passou. Acordara cedo para a vida e já estava em débito com ela.

Enquanto pensava, entrou na varanda o Capitão. Era um cachorro vira-latas velho, de mais de quinze anos. Haviam falhas em seu pêlo devido às sarnas. Deitou ao lado da cadeira, deu uma lambida na mão de seu dono que retribuiu passando-a em sua cabeça. Seu Toninho se lembrou de quando Capitão era jovem e o ajudara na lida com o gado. Depois de um dia de trabalho, ainda tinha energia para brincar com a criançada. Ainda tinham energia! Eram dois velhos agora. Seus pensamentos eram interrompidos devido aos cochilos intermitentes. Se levantou de sobressalto e murmurou:

- Que merda! Nem consigo terminar um pensamento...

Como vinha fazendo há algum tempo, olhou solenemente para o Capitão e se despediu em silêncio. Todas as noites lhe passava pela cabeça que talvez aquela seria a última vez que se veriam. Chutou os tocos de unha para o quintal, entrou em casa e trancou a porta. Capitão se levantou do chão e deitou na cadeira de seu Toninho. Ali ele ficava até seu dono abrir a porta no dia seguinte. Capitão ainda tinha um otimismo que seu Toninho já perdera.