quinta-feira, 31 de maio de 2007

Resgate

Tiago acordou de sobressalto com o telefone. Era seu primo Carlos. A tia Teresa, mãe do Carlos, estava muito mal e queria vê-lo. Vinte anos havia se passado desde a última vez que se viram. Vinte anos sem nenhuma palavra. Mantinham, pelos parentes, os endereços e telefones atualizados para o caso de emergência. E esse era um caso. Decidiu ir até lá. Tia Teresa morava em um sítio a mais de dois mil quilômetros. Era uma sexta-feira. Pegou algumas coisas e ligou para o trabalho dizendo que faltaria naquele dia. Talvez, na próxima semana inteira. Chegaria no domingo, pensou. E, assim, seguiu viagem. Nos dois primeiros dias o silêncio tomou conta de si. Seus pensamentos estavam bloqueados. Apenas dirigia. Parava para abastecer. Parava para comer. Parava para dormir. No domingo de madrugada iniciaria o último trecho de sua jornada. Sairia da rodovia e entraria pelas estradas de terra, as quais também não via desde sua saída para cidade grande. Não as via há tanto tempo quanto à tia Teresa.

Ao sair da rodovia para pegar a estrada que o levaria até seu destino, deparou com uma castanheira imponente, como que na esquina. A mesma castanheira de vinte anos atrás como se fosse uma migalha lançada para marcar o caminho de volta. Pensou na tia Teresa pela primeira vez desde o telefonema. Estava entrando em seu passado. Fora a tia Teresa que o incentivara a sair dali para estudar, dar um rumo na vida, como dizia. Ela era uma mulher forte, alegre, bem à frente daquele lugar. Mas ali, há vinte anos, era apenas a filha solteira do seu avô. Uma mulher que não tinha dado certo, como cansara de ouvir da família. Pouco depois da saída do Tiago, ela se casara com o dono do sítio vizinho. Desde então não se falaram mais. A tia Teresa se sentia constrangida de encará-lo depois de ter se conformado com aquela vida que tanto criticara. Com a vida à qual o convencera a abandonar. Assim como Tiago, ela esquecera o passado. Ela por ter desistido. Ele, por ter seguido.

Durante a viagem Tiago tentava identificar as casas, os lagos e o que ele costumava chamar de triângulo perfeito: a igreja, o campo de futebol e o boteco, sempre juntos. Comparava cenas de matutos à cavalo com as que mantinha ainda na memória. Via os meninos pescando na beira das pontes de madeira e se via neles. Via a gentileza das pessoas que andavam pela estrada e que o cumprimentava com um aceno de cabeça e percebeu que se identificava mais com isso do que com a indiferença da cidade grande. Pouca coisa mudara naquela região. Pelo menos na essência.

Após horas de viagem, parou num posto para abastecer e almoçar. Um lugar estranho no meio do nada. A gasolina, pensou, além de batizada já fizera a primeira comunhão. O restaurante era uma casa de madeira velha onde se percebia as goteiras no teto mesmo sem chuva. Haviam dois ambientes. Um com seis mesas onde dois caminhoneiros estavam almoçando. O outro, nem quis ver o que tinha. Tiago fez seu pedido. Era uma comida honesta e copos mais ou menos limpos. Enquanto comia, as lembranças de sua mocidade invadiam seus pensamentos. Estava sentado perto da janela e viu que sua tranca era uma tramela. "Tramela, tramela, tramela", repetiu em voz baixa com um sorriso nostálgico saboreando as sílabas. Há quanto tempo não pronunciava essa palavra! Quantas outras em seu vocabulário estavam perdidas, esquecidas, pensou. Nisso, percebe que seu sorriso fora correspondido por uma mulher com formas bastante avantajadas atrás do balcão com um decote improvável. Disfarçou desconcertado e pediu a conta. A mulher se aproxima insinuosa e pergunta se ele não queria "comer" mais alguma coisa. Só então se deu conta da situação e percebeu que os caminhoneiros já haviam se retirado para o salão ao lado onde dançavam ao som de Roberta Miranda. Tiago pagou a conta e saiu a passos largos.

Haviam ainda pouco mais de duas horas até chegar ao sítio da tia Teresa. Era pouco, pensou. Queria mais tempo para arranjar suas lembranças. Queria mais tempo para tratar seu passado. Até um pneu furado seria bem vindo nessa hora. Mas o pneu não furou e a distância diminuía como os intervalos dos batimentos de seu coração. Em frente ao sítio Tiago parou e desceu do carro. Pegou um torrão de terra do chão e o esfarelou. Depois outro. Talvez procurando algo. Talvez sentindo novamente sua origem. Talvez ganhando um pouco mais de tempo. Seguiu a pé até a casa onde tia Teresa estava sentada debaixo de uma árvore. Tiago fez um aceno e recebeu um sorriso alegre. Começava uma nova etapa de suas vidas. Para Teresa, uma etapa curta. Para Tiago, um caminho longo. Mas reconciliado com as estradas que percorreu.