sábado, 6 de dezembro de 2008

Deus no Orkut

Como estava Se sentindo um tanto quanto antiquado, Deus achou que seria um boa idéia uma abordagem mais moderna para falar com Seus filhos e decidiu entrar no Orkut. Assim, foi procurar São Pedro para ajudá-Lo, já que ele era mais entendido no assunto e também porque era o único que tinha um laptop, que era usado para consultar os sites de meteorologia só para sacaneá-los depois.

- Bobagem! - exclamou São Pedro já desaprovando a idéia - Esqueça! Ninguém vai acreditar que Deus está no Orkut. Perda de tempo e não vou ajudá-Lo. E estou ocupado também.

O Todo Poderoso, que não é de ficar dando ouvidos sobre o que deve ou não fazer, tomou o laptop e foi lá preencher Seu perfil. Nome, Deus! Bem simples. Sexo, masculino. Apesar de saber que geraria protestos entre as feministas mais aguerridas. País, Brasil, como todo mundo sabe. A idade omitiu por pura vaidade. Estava em forma e sempre perguntava "quantos anos você Me dá?" com uma ponta de orgulho. Também omitiu a religião. Daria pano pra manga e não queria confusão. Em cozinha, até colocou "árabe", mas apagou. Vincularia Sua preferência ao baixo preço das esfihas do Habib's e poderia ser acusado de lobby. As demais informações, como não eram obrigatórias, não preencheu. Por pura falta de habilidade com aquele quadradinho do laptop que substitui o mouse.

Depois, como todo iniciante no Orkut, Deus foi procurar Seus amigos.
- Ô, Pedro! - chamou Deus - Como faço para adicionar todo mundo aqui?
- Um por um! - respondeu São Pedro seco e contrariado.
- Só pode estar de brincadeira! Vou levar uma eternidade! - ironizou.

São Pedro só deu uma suspirada, ignorou o comentário e pensou: fui pego pra Cristo hoje...

Instantes depois, quando já havia enviado o convite para todos os participantes do Orkut, Deus estava apreensivo.
- Ô, Pedro! Convidei todo mundo pra ser meu amigo. Por que não tenho ninguém na minha listinha ainda?

São Pedro, já irritado com tudo aquilo, resolveu conferir o perfil do Velho.
- E esta foto? - perguntou São Pedro com espanto.
- É a minha foto, oras! - respondeu Deus com um sorriso maroto.
- Este é o Clint Eastwood! - bradou São Pedro levando as mãos aos céus, que, no caso, podia ser qualquer direção.
- Não, não, Este sou Eu! - afirmou com uma ponta de satisfação - Ele é que é a minha imagem e semelhança, lembra? Aliás, pelo que me consta, todos são! Só escolhi um que achei mais...
- Desisto! - interrompeu São Pedro. - Toma, pegue estas pedras! Escreva nelas porque sempre funcionou. E, deixe de onda!
- Mas quero ficar mais descolado, falar com todos por um meio mais moderno, usando a internet. Sabe como é, fazer mala direta, deixar scraps, mandar apresentações com mensagens bacanas, correntes de paz, amor... Estas coisas.
- Pelo amor de Deus, Deus! Isso é spam! - sentenciou São Pedro - E isso é coisa do capeta! Use as pedras! E, me devolva o laptop que tenho que ver meus emails.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Ciúmes

Seu Toninho era um homem apaixonado. Mais de cinqüenta anos de casado e ainda olhada para dona Dinha com o mesmo brilho no olhar de quando a viu pela primeira vez. Mas, mesmo com toda a paixão, ou, talvez por causa dela, o ciúme ainda não estava domado. Até para os genros que vinham abraçá-la no natal ou no ano novo ele deixava claro com um olhar sua inquietação. Já dona Dinha, por ele, era mais contida. Mas tinha nele seu grande amor. Seriam um casal perfeito se não fosse o jeito rude de seu Toninho. De família italiana, crescido e vivido na roça. Não economizava nos gestos, nos palavrões e nem no volume da voz. Mesmo à mesa, com boca cheia. E dona Dinha não ficava muito atrás. Nem nos palavrões.

Já o encontro do casal, na cama propriamente dito, com o tempo, com a idade, se tornara menos freqüente. Mas, eventualmente, um procurava o outro que raramente declinava o convite. Mas, naquele dia, dona Dinha não estava afim.

- E, porque não? - Quis saber seu Toninho já levantando a voz.
- Estou cansada, com dor de cabeça. Hoje não, vamos dormir. Se aquiete! - ordenou dona Dinha.
- Sei bem o que é isso! Cansada? Sei muito bem!
- Sabe o quê, Toninho? Heim, sabe o quê? Só estou cansada.
- Cansada, cansada... Você tá é guardando! Guardando pro Bino! - acusou seu Toninho num desabafo.

Bino era um rapaz que paquerava dona Dinha quando ela ainda tinha quinze anos, pouco antes de conhecer seu Toninho. Nunca tiveram nada, e o rapaz nunca mais foi visto. Mas dona Dinha sempre deixou a suspeita pra provocar ciúmes no marido. E seu Toninho nunca disse um piu sobre o assunto até aquela noite. Só pra não dar o braço a torcer.

Com a acusação do marido, dona Dinha começou a passar mal, baixou pressão, ficou pálida! Nisso, o filho mais velho que estava de férias com a esposa invadiu o quarto para acudir a mãe depois de ouvir a discussão dos dois. Outras duas filhas, uma solteirona e outra nem tanto, vieram em seguida. O filho mais velho, o Chico, deu de dedo com o pai:

- O senhor nem está mais dando no couro e vem encher o saco da mãe! Se acontecer alguma coisa com ela, eu mato o senhor!

Sob a ameaça, seu Toninho saiu assustado porta a fora. As duas filhas troxeram água com açúcar, abanaram e falaram todas ao mesmo tempo e cada uma mais alto que a outra. Até que dona Dinha melhorou e todos se acalmaram e sentiram falta de seu Toninho.

- E o pai? - questionou a mais nova.
- Ele foi embora. - retrucou Chico com ar de quem tinha feito a coisa certa.
- Mas você tinha que ter falado daquele jeito com o pai? Precisava? E agora? Nessa hora da noite o pai por aí na rua, sozinho. - acusava a outra filha, já reestabelecendo o volume de voz padrão da família.
- É que, é que... - tentava se justificar Chico, com um princípio de choro - Olha as coisas que ele falou pra mãe...
- Você vai é atrás dele! - disse sua mulher - Não quero ninguém dizendo que meu marido é o culpado pelo sumiço do próprio pai. Ô família, viu?
- Está bem, vou pegar o carro e vou atrás do pai. Não deve ter ido muito longe.
- Mas, vê se bota uma calça, né? Não vai sair só de cuecas por aí. O que os outros vão pensar?
- Vão pensar que é um mendigo com esses furos na cueca. - Alfinetou a irmã solteirona.

Chico vestiu uma calça e foi até a garagem pegar o carro para tentar encontrar seu pai. Pensou em ligar para os parentes para pedir ajuda. Quem sabe seria melhor já ligar pra polícia, pensou já cheio de remorsos. Então, ao abrir a porta do carro, lá estava seu Toninho, de pijamas, deitado no banco de trás e dormindo como um anjo. Como se nada tivesse acontecido.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

O Retorno

Três dias depois de ter saído subitamente pelo portão da frente e se perdido pelas ruas da cidade que mal conhecia, Oswaldo retornou a sua casa. O portão estava providencialmente entreaberto, o que permitiu sua entrada sem ser notado. Estava assustado, cansado e com medo de como seria recebido. Nunca havia ficado tanto tempo sozinho longe e sem proteção de sua família.

Primeiro deu poucos passos, parou, olhou o entorno atento. Estremeceu ao ouvir o barulho de um abacate caindo do pé. Seus olhos ficaram esbugalhados de medo e ficou paralisado por um instante. Quando retomou a respiração, começou a andar lentamente pelo quintal, como que reconhecendo o lugar. Pensou em entrar ou chamar para avisar que tinha voltado, mas lhe faltou coragem. Continuou a andar, foi até os fundos e se sentou na calçada para descansar um pouco. Exausto, não resistiu e pegou no sono. Mesmo ali na calçada, ainda escondido, conseguiu dormir sossegado, se sentido já em casa. Até que ouviu alguém gritando: Oswaldo! Seu cretino! Por onde andou?

Outro susto! Saiu do anonimato e estava frente a frente com seu maior medo agora, o de ser rejeitado, o de não ser mais aceito. Tremendo, de cabeça baixa, com os olhos marejados, tentou dizer alguma coisa e o que saiu foi mais um lamento, um choro contido. Viu uma cara amarrada, como que tentando decidir seu destino. Então, aparece o menino correndo, avisado de seu retorno pelo grito, com um sorriso enorme e o abraça, rindo e chorando: Oswaldo, você voltou, você voltou! A mãe do menino também abriu um sorriso e também se aproxima: nunca mais faça isso, Oswaldo! Quer matar a gente de susto? Nunca mais... Oswaldo, sem se conter de alegria, abandou o rabo e os lambeu como se fossem um enorme pote de sorvete.

O Som do Silêncio

Guilherme chegou em casa e procurou em seu computador a música The Sound of Silence. Ouviu só a primeira parte: Hello darkness, my old friend, I've come to talk with you again. Por alguma razão precisava se lembrar da música. Precisava do silêncio, mas queria uma trilha sonora que o representasse e esta música vinha a calhar. Precisava da escuridão, mas queria uma luz ao longe sinalizando uma possível fulga. Algo que sinalizasse a transitoriedade da situação.

Não conseguiu o silêncio. Sua cabeça não parava de falar, de avaliar, de julgar, de reprimir, de contextualizar, de ponderar. E a trilha sonora se tornou apenas mais um entre tantos ruidos. A escuridão, sim, esta estava ali, a postos. Mas sem nenhum ponto de luz pela qual se orientar.

- Não rolou uma química, entende?

Esta foi a explicação que ouviu. De química, mesmo, só se lembrava maldita tabela periódica. E, da tabela periódica, só se lembrava do peso atômico do hidrogênio. O que não é grande coisa em termo de conhecimento da matéria. E, aqui, vale o trocadilho.

Já cansado, pegou um livro do Charlie Brown, o desenho e não a banda, pra se distrair um pouco e leu algumas tirinhas. Sempre funcionava! Se identificava com o personagem. Socialmente inviáveis, mas com uma esperança mais verde que maçã. Maçã verde, claro. E, depois, foi domir.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Origem dos Mafagafos

Os mafagafos, ao contrário do que se pensa, não são pássaros. São, na verdade, uma espécie de roedor, muito parecido com as capivaras brasileiras - menores, claro - que viviam na península ibérica. A confusão deve-se ao trava-língua que fala em "ninho de mafagafos". O que não é um erro, tendo em vista que os roedores também fazem ninhos para acolher sua prole. No caso dos mafagafos, seus ninhos eram montados em tocas às margens dos rios.

Os mafagafos foram extintos no final do século XVII. Sua carne era muito apreciada pela população local e sua caça extremamente fácil, o que levou ao fim desta espécie. Uma das características destes animais era a permanência no ninho até quase adultos sob o cuidado dos pais. Como este processo era longo, até o amadurecimento de uma ninhada, surgiam outras, tendo, num mesmo ninho, grupos de filhotes com idades diferentes. O casal mafagafo, aliás, não se separava e, quando um morria, o outro permanecia sozinho pelo resto da vida. Se ainda tinha filhotes, continuava a mantê-los.

O filhote mafagafo era muito frágil e dependente. Quando ouviam o som característico de seus pais voltando - que sempre saíam juntos confiantes da proteção do ninho - , colocavam a cabeça para fora da toca, ansiosos pelo alimento que receberiam. Então, era comum que caçadores imitassem este som através de apitos feitos de madeira e, quando os filhotes botavam a cabeça para fora, estes eram atingidos pelos caçadores com um pedaço de pau. Os que não conseguiam sair, os menores, acabavam sobrevivendo da tocaia fugindo para o fundo da toca. Assim, as ninhadas mais novas conseguiam sobreviver. O curioso é que havia uma proporção entre os filhotes mais velhos, ou seja, os que foram atingidos, de acordo com a idade aproximada deles, e os demais. Com um sofisticado cálculo, podia-se deduzir a quantidade de filhotes que havia no ninho a partir dos mafagafos abatidos.

Na cultura local, para estimular tanto a caça, quanto o raciocínio, os pais indagavam às crianças a pergunta a que tanto estamos acostumados: se desmafagafássemos (termo que significava abater mafagafo) cinco mafagafos, quantos mafagafos teríamos? O cálculo se perdeu no tempo. Ficou apenas a pergunta como desafio. Mas, desafio mesmo, era a resposta.

É tudo verdade!

segunda-feira, 28 de julho de 2008

A Lua

Hoje é dia de lua cheia. O céu está limpo, cheio de estrelas e a lua bem em cima clareando tudo com sua luz suave e acolhedora. O caipira, sentado em um tronco tombado ao lado do ranchinho, com seu chapéu de palha sobre o joelho e pitando seu cigarro de fumo de corda, olha hipnotizado para o céu e seus olhos brilham tanto quanto jabuticaba madura em dia de chuva. Ao seu lado, um vazio deixado reservado para alguém que nem ele sabe direito quem é. Na solidão do coração do caboclo, a paixão fica pronta antes de ter alguém para amar. O sentimento fica à espreita esperando o dia chegar e então, se tiver coragem, se revelar. O caipira olha para trás e vê só sua sombra e só então se dá conta da solidão que lhe fere. A sombra é diferente da formada pela luz do sol agressiva, que queima quem acerta e finca o desenho por detrás no chão num contorno certo. A luz da lua, ao contrário, encontra o rosto marcado do caipira e desenha devagarinho uma sombra com seus contornos e a repousa sobre o chão, quase sem tocá-lo. O caipira suspira, engole seco com nó na garganta e a lua, em respeito a sua dor, se põe atrás de uma nuvem passageira. E volta para lhe fazer companhia logo em seguida. No silêncio absoluto, o caipira procura por sons filtrados durante anos de solidão. E começa a ouvir aos poucos o barulho das árvores balançando com a brisa da noite, as cigarras à procura de suas parceiras, as patas de seu cão tocando a terra num ir e vir por nada, uma manga caindo do pé, o cavalo se mexendo para espantar os mosquitos que atrapalham seu sono. De tão acostumado a tudo isso, o caipira já não os ouvia mais. Só ouvia o diferente. E o diferente, o que destoava ali, era raro. A solidão caipira ensurdece. Então, meio desconcertado, como se alguém estivesse de tocaia, dá uma pigarreada para se ouvir também. E se ouve e se reconhece naquele lugar. Agora sim, ele também existe em seu próprio mundo. O cão então pára com o barulho emitido pelo seu dono e, meio encabulado, dá um latido e abana o rabo timidamente. Agora, ele também se reconhece ali.

domingo, 27 de julho de 2008

O Mundo das Palavras

Era uma vez uma grande comunidade de palavras que viviam aprisionadas em um livro do Kant. Se relacionavam muito mal umas com as outras e, por isso, tinham grandes dificuldades de serem entendidas, mesmo tendo tanto a dizer.

As palavras que mais sofriam eram as dos últimos capitulos que quase não conseguiam se expressar. Culpavam às outras dos primeiros capítulos que, com suas necessidades de atenção, cansavam tanto o leitor que ele desistia de continuar. Mas, mesmos as palavras dos primeiros capítulos também estavam deprimidas. Raras eram as vezes em que suas rotinas eram quebradas com uma risada ou como no dia em que uma gota de suco de laranja caiu sobre a raciocínio, sempre tão certinha.

Então, um dia, algumas palavras se rebelaram e decidiram procurar um livro mais feliz para viver. A alegria sugeriu um livro do Ziraldo onde sua irmã gêmea morava. Lá não tinha rotina, as palavras viviam em harmonia, eram compreendidas por todos e todas, mesmo as da última página, eram conhecidas. Todas concordaram e iniciaram a aventura. Mas só foram as palavras leves. A todavia, a dialética, a indubitavelmente não foram chamadas. As em latim, elitistas como sempre, não quiseram se misturar e ficaram. À priori foi, mas disfarçada.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Culpa, Minha Companheira

Ah, culpa que me pesa! Como queria te largar por aí, como que esquecida num canto que não é meu. Mas vai que alguém te encontre e passe a te carregar. Eu não suportaria e, por isso, acabo por te levar comigo, certo que é minha e que teu peso me é justo.

Mas me canso. Queria te ver desfinhando, às vezes às pressa, às vezes aos poucos. Mas acabo por te cuidar como deveria cuidar das coisas que me são preciosas. E seu fim não vejo senão além do meu próprio.

Ah, culpa, você é minha pior companhia e é quem encontro quando procuro a minha melhor. E você nunca me nega sua presença.