quarta-feira, 23 de agosto de 2006

Presentes

Presente - A Difícil Arte de Dar

Sempre tive dificuldades com presentes. Dar presente a alguém que se gosta, de uma forma espontânea, quando se encontra algo interessante por acaso, é gostoso. No entanto, aqueles presentes de anivesários, natal e dia das mães em que você é obrigado a cumprir com sua parte no ritual, é uma das maiores aflições da vida humana. Eu acho.

Dia dos namorados é pior. Não tem como fugir! Você resolve não dar um presente para sua namorada porque simplesmente não tem a menor idéia do que dar. Vocês estão juntos há pouco tempo e você tem apenas uma vaga idéia de suas preferências. Aí você pensa, vou fingir que esqueci. Não funciona! Tudo no mundo o faz lembrar. E sempre quando ela está do lado.

Depois você desiste do esquecimento. Resolve dar só uma lembrancinha. Algo com mais sentimento, com um significado para os dois ou, simplesmente algo bem barato, afinal a grana está curta. Você compra um maravilhoso porta incenso na feira feito de bambu. Coisa fina! Aí chega sua "amiga" e te diz: olha, um passarinho verde me contou que você vai ganhar um presentão, heim? Pronto, já era a lembrancinha. Você não vai querer correr o risco de ver a cara dela de frustração ao abrir seu o presente. Agora só restam duas saídas: renogociar a dívida do carro ou terminar o namoro. Entende porque tantos relacionamentos terminam às vésperas do dia dos namorados? Depois voltam! Aí você dá a lembrancinha pela reconciliação.

Presente - A Difícil Arte de Receber

Receber um presente é algo que exige certa habilidade. Coisa que não tenho. Tenho uma profunda dificuldade para demonstar qualquer sinal de alegria quando ganho um gibi do Tio Patinhas no amigo oculto. Amigo oculto para mim sempre foi uma provação. E o gibi nem foi o pior presente.

Alguns presentes marcam. Outros, traumatizam. Tenho um amigo que já me contou várias vezes que ganhara uma motoquinha de brinquedo da avó. Ele tinha uns dezesseis anos e fazia um tremendo sucesso entre as meninas do colegial. Todas as vezes em que ele me contou isso, percebi uma mágoa em seu olhar. Nem tirei do plástico, dizia.

Já a minha avó, sempre deu presentes iguais para mim e para meu irmão. Sempre carrinhos. Meu irmão é oito anos mais novo. Quando ganhei o último carrinho dela, ao catorze anos, ficou evidente minha decepção. Valeu a pena não ter disfarçado. O próximo presente foi um porta-retratos. Foi minha mãe quem o tirou do plástico.

sexta-feira, 18 de agosto de 2006

Famas

Na turma, todos tinham uma fama. O Paulo era sortudo por uma vez ter ganhado uma leitoa numa quermesse aos quinze anos quando ainda vivia no interior. Nunca mais ganhou nada na vida. Mas ainda é o sortudo. Mesmo depois de todos os presentes que ganhara nos amigos ocultos em que participou: um gibi, um disco do Amado Batista e um prato!

O Peixoto era o inteligente. Quando estava na quarta série foi eleito o segundo melhor aluno da turma. Só perdeu para a Maria Teresa. Mas ela era japonesa, então não contava. Não se pode concorrer com uma japonesa, dizia. A família e os amigos aceitaram seu argumento. Anos mais tarde abandonou a faculdade e comprou um caminhão. Comprava alho no sul e o revendia no Piauí. Vivia uma vida apertada mas, ainda assim, mantinha a fama e os amigos ainda pediam sua opinião antes de tomar qualquer decisão importante.

O conquistador! Era assim que os amigos se referiam ao Guimarães. Fora o primeiro a se casar. Teve apenas três namoradas. Dizia quatro por ter terminado e voltado com uma delas. Mas, aos doze anos, foi beijado pela Ruth! Ah, a Ruth! Ela tinha quinze anos, era a mais bonita da escola e só namorava homens mais velhos. Um dia ela agarrou o Guimarães no corretor e lhe de um beijo. Foi só um selinho, mas ele tinha a prova! As marcas de batom eram, sem dúvida, da Ruth. O feito do Guimarães até hoje é lembrado. E, ninguém duvida, ele merece a fama que tem!

Já o Arlindo, que até então não tinha fama de nada, apareceu com essa. Se auto-definiu como o solitário e não deu explicações. Depois de muita insistência, ele contou que poucos dias antes fora a um shopping comprar uma tampa para o vaso sanitário. Desta feita, aproveitara para jantar em seu restaurante favorito. Pedira seu o prato favorito. Pedira o seu vinho favorito. Quase ao fim do jantar se deu conta que colocara a tampa da privada na cadeira a sua frente. Ela estava sentada, como que olhando para ele. Só alguém muito solitário, concluiu, pra levar a tampa da privada para jantar! Bem, ele ainda não tinha uma fama. Aceitamos a idéia e ele passou a ser o solitário da turma.

domingo, 13 de agosto de 2006

O Fim de Luiz Otávio*

Conheço Luiz Otávio desde pequeno. Solitário, some por longos períodos e depois aparece do nada contando seus problema, procurando um ombro amigo, procurando entender-se. É um sujeito confuso, estranho. Sua fobia social o torna inapto para as atividades mais simples da vida que contem com a presença de mais de uma pessoa, como bater-papo, jogar futebol, comprar pão na padaria. Luiz Otávio não consegue iniciar uma conversa. Nunca foi capaz. Não consegue sequer se manter numa.

Seu jeito de ser o deixa angustiado, deprimido. Sempre o vi desse jeito, sempre. O que varia é a intensidade. Sua vida é um grande peso. Suicídio é um pensamento seu recorrente. Mas sempre consegui dissuadí-lo. Não poucas vezes pensei, depois de um longo período sem contato, que Luiz Otávio já tivesse consumado o ato. Mas de repente ele aparece de novo. E com mais problemas. E mais angustiado. Luiz Otávio é um peso também para mim. Há sempre a possibilidade de ele aparecer num momento inconveniente e eu ter que largar tudo para ajudá-lo.

A última vez que o vi foi nesse final de semana. Ele me contou que tentara novamente se "inserir no mundo", como costuma dizer. A tarefa era simple, chamar uma amiga por quem ele tem uma certa queda para um cinema. Apesar de gostar de filmes iranianos e coisas do tipo, estava disposto a assistir qualquer coisa. Até mesmo aquelas apresentações sobre a vida de Cristo que acontecem em cidades do interior às vésperas do natal em praça pública. Bem, ele não conseguiu. Disse tudo que passou pela sua cabeça. Só que não passou pela sua cabeça as palavras filme, cinema, sair juntos e nem nada relacionado ao programa. Luiz Otávio se perdeu em seus pensamentos. Tropeçou neles. Não conseguiu juntar as palavras que saiam de sua boca. Nem ele sabia o que estava falando. Precisava de um milagre para sair daquela situação embaraçosa. E o milagre veio: levou um fora.

Depois que me contou isso, Luiz Otávio me disse com uma voz solene que estava farto de tudo isso e que estava decidido a fazer o que vinha adiando há muito tempo. Mas, desta vez, eu não lhe disse nada. Não lhe dei esperanças de que ele iria mudar. Eu não acredito que ele possa. Desisti dele. E eu também já estou farto do Luiz Otávio.


* Baseado em depoimentos apócrifos

domingo, 6 de agosto de 2006

A Epopéia do Seu Geraldo

Fui conhecer Piracicaba. Passei pelo centro, pela praça da matriz e, seguindo algumas placas, cheguei ao Engenho Central que fica às margens de um rio. Do outro lado do rio. Para atravessá-lo há uma ponte pênsil que, para minha surpresa, é uma homenagem a José Dias Nunes, o Tião Carreiro, de quem sou fã. Daí a deduzir que se tratava do Rio de Piracicaba que dá nome a uma famosa música do Tião Carreiro, foi fácil. Mas, até então, não sabia ainda o que era aquele conjundo de ruinas. Até que encontrei o seu Geraldo.

O matuto se aproximou de mim já lamentando só pra puxar assunto: "como isso aqui tá abandonado". Que tipo! Septuagenário, faltando os dentes da frente, chinelo de dedo mas com um toque de vaidade que revelaria depois: "homem de cabelo grande e barba grande é falta de higiene, não é?" E o seu Geraldo estava com o cabelo cortado, penteado e a barba feita.

Peguntei pra ele o que havia sido aquilo ali e ele me explicou que se tratava do primeiro engenho de açúcar da região onde trabalhara seu finado pai. Seu pai era caminhoneiro, tinha um chevrolet e trazia cana-de-açúcar para o engenho. Me contou que quando tinha uns sete anos, de tanto insistir, seu pai o deixara acompanhá-lo num dia de trabalho. Eram viagens curtas, se faziam várias por dia. Na última, como havia de ser, o freio do caminhão falhou numa ladeira de pedras lisas e o caminhão bateu na trazeira de outro no final da ladeira, jogando ele e seu pai para fora da cabine. Seu pai teria lhe dito "se você não tivesse insistido, não teria acontecido isso", no que ele retrucou "se eu tivesse vindo ou não teria acontecido do mesmo jeito". Seu pai morrera algum tempo depois, tomando o café da manhã com a mulher e onze filhos. Seu Geraldo então me mostrou a tal ladeira, me explicou como era o fluxo de atividades no local, me mostrou os trilhos do trem e me contou porque o engenho fechou.

Seu Geraldo então me contou que, após sofre uma cirurgia na cabeça para tratar de um derrame, passara a contar coisas: móveis, coisas de cozinha, roupas, até a quantidade de paralelepípedos de uma rua pequena. Num dia de carnaval, contara a quantidade de pessoas que passavam em fente a sua casa em direção ao baile. Só contara as pessoas fantasiadas, as outras não dava pra saber aonde iam. "Separei por gente branca e gente preta. Deu oito páginas de gente preta e seis de gente branca. Então tinha mais gente preta do que branca na região, não é?" Me lembrei de Beremiz Samir, o Homem que Calculava. Fiquei empolgado! Seu Geraldo, assim como o personagem de Malba Tahan, poderia ir longe com isso. Perguntei se ainda contava coisas e ele me disse que não. Disse que Jesus o havia libertado disso. Pensei, ainda bem que Beremiz Samir não era cristão!

Não sei se as histórias do seu Geraldo são verdadeira. Não sei nem o seu nome. O "Geraldo" inventei. O Engenho Central hoje é uma área de atividades culturais. Entre outras coisas, fica lá o Salão Internacional de Humor de Piracicaba. Sobre o Engenho, é fácil encontrar informações na internet. Sobre seu Geraldo, só aqui.