terça-feira, 12 de setembro de 2006

Vô Barbosa*

Assim que meus pais se casaram meu avô foi morar com eles. Até meus dez anos convivi com meu avô. Ele era um sujeito enigmático. Pouco se sabia dele. Talvez nem houvesse muita coisa para se saber e eles fosse simplesmente muito simples. Mas sempre restava a dúvida. Por algum motivo que nunca entendi direito ele não podia fazer muito esforço e tinha algumas restrições quanto à alimentação. Fora isso, sempre me pareceu um homem bastante saudável. Não tenho nenhuma imagem dele doente ou com alguma dificuldade.

Meu avô era carpinteiro e fazia pequenos trabalhos em uma bancada no quintal de casa. Sempre que mudávamos, a primeira providência dele era montar sua bancada. Tinha um monte de ferramentas, três caixotes grandes cheios, das quais zelava muito, para usar uma expressão dele. Fazia cabos de enxadas, de martelos, amolava serrotes e facões. Também fazia banquinhos desses que armam e desarmam e consertava coisas de cozinha. Eventualmente, algumas peças de artesanato. Ele tinha uma boa freguesia o que garantia, juntamente com a aposentadoria, sua independência financeira. Meu avô era perfeccionista em sua atividade. Dos trabalhos que fazia, nunca vi ninguém fazer melhor. É verdade que há muito tempo não conheço ninguém que faça essas coisas. Mas estou falando do meu avô e prefiro manter a parcialidade.

Além de trabalhar com madeira, meu avô gostava de escrever cartas. Ele sempre matinha um bloco de papel de carta na mesinha do seu quarto. Escrevia para parentes e amigos distantes no tempo e no espaço. De vez em quanto conseguia o endereço de um de quem perdera o contato e escrevia uma carta tentando reavivar a amizade. Se obtivesse resposta, comemorava.

Mas o que mais lembro do meu avô é das nossas conversas. E como conversávamos! Passei muitas tardes ajudando-o nos seus afazeres e conversando. À noite, após o jornal, ficávamos na varanda batendo papo. Eu contava pra ele as coisas que tinha aprendido na escola e ele ficava prestando atenção em tudo. Nunca soube se ele entendia o que eu falava, mas na época eu acreditava nisso. Me lembro da vez que expliquei para ele o sistema solar. Até os movimentos de rotação e translação comentei. E ele sempre atendo a tudo. E ele me falava do seu dia, contava "causos", me dava conselhos. Da sua vida mesmo, me falava pouco. Mas meu avô fazia uma coisa que nunca vou me esquecer. Muitas vezes o flagrei na varanda à noite sozinho olhando pra o céu contando estrelas. Eu ficava então ao seu lado também olhado para o céu tentando entender o que ele estava fazendo, mas nunca ousei interrompê-lo. Nunca ousei questioná-lo. Preferia apenas contemplar o seu momento.

Quando eu tinha mais ou menos dez anos ele se desentendeu com meus pais e foi morar com minha tia, filha dele, em outra cidade. Depois disso nos vimos uma ou duas vezes apenas. As circunstâncias e as prioridades da adolescência nos afastaram. Anos depois ele morreu. Dias antes, já muito doente, teria dito à minha tia "esse neto eu não vejo mais", referindo-se a mim. E não viu mesmo. Eu, já adulto, teria novas prioridades e não o visitei. Até então, não tinha me dado conta do quanto éramos ligados. Isso já tem alguns anos mas, às vezes, tudo que eu queria era poder novamente conversar com meu avô naquela varanda. Às vezes, tudo que eu queria era poder encontrar uma alma disposta a contar as estrelas. Como sinto sua falta.

*José Barbosa Rezende: 25/08/1919 03/02/1998

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